Uma situação para lá de inusitada vem sendo discutida nos bastidores da política de Araucária — cidade que fica na região metropolitana de Curitiba, e muito em breve deve desaguar no Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. A Justiça Eleitoral do município pode abrir uma AIJE (ação de investigação judicial eleitoral) para apurar se houve fraude à cota de gênero na eleição de 2024 da cidade envolvendo o partido Solidariedade.
O fato envolve a candidatura de Anderson Dutra à Câmara de Vereadores de Araucária.
O partido dos investigados registrou candidatura fraudulenta, ao passo que o candidato Anderson Dutra, foi apresentado perante a Justiça Eleitoral como uma mulher transgênero, mas se apresentou durante todo o período eleitoral como um homem cisgênero.
O pedido de investigação partiu de Ben Hur Custódio de Oliveira — que era presidente da Câmara Municipal de Araucária e acabou terminando o pleito na suplência. O Blog Politicamente teve acesso ao documento que está nas mãos do juiz Carlos Alberto Costa Ritzmann, da 50ª Zona Eleitoral de Araucária, que já marcou uma audiência de instrução para o próximo dia 23 com a oitiva de testemunhas. Por conta do número de réus, pontua o magistrado, existe a possibilidade da audiência ser realizada no Tribunal do Júri de Araucária — por conta da estrutura do fórum.
O ex-presidente da Câmara sustenta que “Anderson se identificou por anos enquanto um homem gay, sempre aderindo aos símbolos e cores do movimento LGBT, mas jamais se apresentando pelo gênero feminino”. E que, ao registrá-lo na proporção dedicada às mulheres, o partido Solidariedade teria incorrido em “fraude à cota de gênero por candidatura evidentemente fictícia ou simulada”.
Na ação, o advogado Guilherme Gonçalves, que representa Ben Hur, coleciona inúmeros materiais de campanha em que Anderson Dutra se identifica no masculino, não havendo nem sequer uma menção de si mesmo como mulher ou candidata em todas as publicações encontradas em suas redes sociais.
“Anderson não se identifica por um nome social feminino, não se apresenta como transgênero, não refere a si mesmo no feminino ao falar de sua profissão ou candidatura e, ainda que não seja um requisito para pessoas trans, importa frisar que não apresenta características físicas que sequer indiquem alguma espécie de tratamento hormonal. Ele age, explicita identidade social e se expõe publicamente como homem cisgênero homossexual”, diz um trecho da ação.
O advogado pontua ainda que não se pode confundir a possibilidade de abertura da norma de cota de gênero para que pessoas transgêneras se apresentem com a identidade de gênero que lhes é pertinente, sem que a Justiça Eleitoral observe parâmetros mínimos para essa caracterização, sob pena de “se esvaziar o sentido da norma da cota de gênero e permitir que a norma seja frustrada ante debates”.
E relembra a problemática enfrentada pela Justiça Eleitoral de uma “série de manobras que passaram a ser utilizadas pelos partidos políticos para burlar a norma – entre elas a apresentação de ‘candidaturas aparentes’, ‘fictícias’ ou ‘laranjas’, que não objetivam verdadeira disputa eleitoral, mas somente cumprimento de requisito formal para possibilitar a inscrição de mais homens nas chapas”.
“Assim, é mister reconhecer a ocorrência de fraude à cota de gênero em relação a apresentação de Anderson Dutra, como uma candidata no DRAP do partido Solidariedade no município de Araucária, fazendo-se necessária a declaração de nulidade do DRAP da chapa inscrita”, salienta o defensor ao requerer a abertura de uma AIJE para apurar o caso.
Candidaturas sem receita ou gasto eleitoral
A ação levanta ainda suspeita de outras três candidatas mulheres que, segundo o documento, não teriam apresentado nenhuma receita ou gasto eleitoral – e que duas tampouco fizeram qualquer campanha. E que o Solidaridade indicou 14 candidatos para as eleições proporcionais de 2024, sendo nove homens e 5 mulheres, “precisamente o mínimo necessário para o respeito ao determinado pela legislação”.
O ex-presidente do legislativo requer a procedência da AIJE para cassar o DRAP (Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários) apresentado pelo Solidariedade de Araucária no pleito de 24, além de cassar os diplomas de todos os candidatos a ele vinculados e ainda declarar a nulidade dos votos obtidos pelo partido, “bem como declarar a inelegibilidade de seus candidatos por 8 (oito) anos a partir das eleições de 2024”.
Dentro do processo, que corre na 50ª Zona Eleitoral de Araucária, o Solidariedade argumentou que “o candidato é homossexual e que, não obstante seu sexo biológico seja masculino, ele identifica seu gênero como feminino, pois, subjetivamente, é assim que se sente, razão pela qual se declarou, no pleito eleitoral, como uma mulher transgênero”. E negou qualquer irregularidade nas candidaturas das mulheres da chapa.
O Blog Politicamente teve também acesso ao parecer do Ministério Público Eleitoral do Paraná. O promotor eleitoral Henrique Bolzani se manifestou contra a abertura da AIJE. Cita o promotor que a candidatura de Anderson Dutra, em que ele se declarou ser uma mulher transgênero, foi deferida e que não houve impugnação.
“No caso das pessoas transgênero, que é o caso do investigado Anderson Dutra, a performatividade do gênero não está condicionada às vestimentas, características físicas e outros padrões sociais associados ao comportamento feminino e masculino, uma vez que a subjetividade é mobilizada a partir das concepções próprias de cada indivíduo e da forma como este se relaciona com o âmbito exterior”, asseverou o promotor eleitoral.
Já com relação ao fato de candidatas do Solidariedade de Araucária não terem apresentado nenhuma receita ou gasto eleitoral na campanha, Henrique Bolzani descaracteriza suposta fraude das cotas de gênero ao considerar que “as manifestações políticas e as propagandas veiculadas pelos candidatos, durante o pleito eleitoral, podem ser realizadas tanto pessoalmente quanto virtualmente. Ademais, é sabido que não são todos os candidatos e partidos políticos que detêm recursos para financiar propagandas eleitorais de grande projeção, assim como tempo diário para dedicação da difusão da campanha política em redes sociais”.